Retribalização?

Observando a internet, hoje dá impressão que estamos vivendo algo parecido com uma retribalização de parte da sociedade, uma espécie de estratificação horizontal, diria, com a formação de grupos cada vez mais homogêneos cultivando valores, verdades absolutas, e se retroalimentado delas, em círculos fechados de agregação e segregação.

A internet, particularmente as redes sociais, está facilitando isso. Veja bem, não se trata de culpar a internet. Ela é “inocente”, apenas um meio democrático e moderno de comunicação.

Um meio onde predomina a liberdade de expressão quase absoluta, apesar da censura moral, seletiva, das redes sociais, baseada em normas privadas e convenções empresariais próprias, enquanto é permitido, por exemplo, o ativismo de grupos organizados de apologia à discriminação generalizada, à violência, à intolerância, dá espaço a fanatismos de todo tipo e vandalismo com conteúdos assustadores.

Mas nada disso pode justificar qualquer forma de censura. A internet deve ser livre. O que está em questão são as relações sociais, as organizações e grupos que ganharam força e voz na internet, conseguiram espaço para ações generalizadas.

A rede é apenas uma praça, que nos permite ver de nossas janelas o que está acontecento e participar, tendo em vista a disponibilidade de informações, o fácil acesso ao conhecimento, o compartilhamento e a comunicação direta entre cidadãos.

Mas, por incrível que pareça, o que tornou-se bom para a democracia, para a melhoria das condições de vida das pessoas, o acesso ao conhecimento, à diversidade cultural, a civilização, pode estar também proporcionando segmentação, retribalização social, em muitos casos amalgamada com costumes, valores, posturas, já superados pelas sociedades democráticas modernas.

“Haters” e “trolls”, grupos de verdadeiras bestas do apocalipse, muito próximas das bestas de certos filmes e jogos eletrônicos difundidos em larga escala ganham força nas redes sociais destilando ódio e intolerância.

É como se algo do medievalismo tivesse escapado, ressurgido das trevas, das brumas do obscurantismo, e estivesse dizendo: “aqui estou!”

Evidentemente com a ajuda dos impérios de comunicação tradicionais, que não estão nem aí para a cidadania, nem para a civilização, estão preocupados com o que vai lhes render mais dinheiro. Por esse motivo, parece terem predileção pela violência, pelo que há de pior do ser humano.

Nessa mesma esteira, figuram grupos religiosos, que se tornaram organizações transnacionais, com poder, dinheiro e meios de comunicação, com projeto político e estratégia definida para ocupar os espaços dos partidos politicos, entidades civis e das instituições do Estado.

O fanatismo religioso, baseado em valores, na sua maioria medievais, é o que mais ameaça a democracia.

Põe em risco o Estado laico, ameaça as conquistas da agenda de direitos humanos, a ideia de nação cidadã, que sempre se renova diante dos novos desafios da humanidade.

A eleição do deputado Eduardo Cunha para a Presidência da Câmara dos Deputados é um exemplo dessa ameaça.

O atraso organizado cravou uma bandeira no Congresso Nacional, tornou uma ponta de lança de grupos conservadores, fundamentalistas e intolerantes, que nas suas “tribos” criaram um mundo próprio, à margem da cidadania e da construção da nação democrática.

Segmentos como bancada evangélica, bancada da bala, bancada ruralista e outras, não querem diálogo, estão determinados a impedir a agenda de direitos humanos e subtrair conquistas dos trabalhadores. Isso é fato. Querem, por exemplo, reduzir a maioridade penal, o fim do estatuto do desarmamento, a terceirização da mão de obra entre outras conquistas sociedade brasileira.

Nada menos do que seis projetos de lei da agenda de direitos humanos, que estavam prontos para votação na Câmara, foram barrados pelo presidente.

E há movimentação de religiosos no sentido de impor uma pauta ainda maior de projetos de lei de retrocessos, exatamente contrários às conquistas democráticas.

Na internet, uma grande massa de pessoas vive nas mãos de manipuladores, se alimentam de verdades absolutas criadas e difundidas pelos próprios membros dos grupos, formando uma rede de ódio e intolerância sem precedentes na história.

Gente de ouvidos moucos, insensata, sem discernimento, desprovidas de espírito democrático.

São incontáveis grupos de diversos segmentos, de extrema radicalidade: vão de veganos, salvo excessões, que se acham seres especiais – alguns acreditam até na purificação da raça por meio da alimentação, passando por pessoas que querem mudar o mundo montado numa bicicleta – a extrema direita: racistas, homofóbicos, machistas, misógenos, e nazi-fascistas assumidos, declaradamente inimigos da democracia.

A grande maioria, no seu mundo privado, na sua aldeia eletrônica, numa onda de que a voz da mídia é a voz de Deus.

Reverter esse quadro é uma tarefa, para as entidades democráticas da sociedade civil, à altura da luta pelo fim da ditadura militar. E das instituições educacionais, para fazer frente ao avanço do atraso organizado e formar cidadãos e não apenas adestrar crianças e jovens para o mercado de trabalho.

A preservação do Estado laico tornou-se uma das prioridades. No Congresso há movimentação nesse sentido. Está sendo criada uma Frente Parlamlentar em Defesa do Estado Laico.

As entidades civis, principalmente as de direitos humanos, deveriam se articular com a Frente Parlamentar a fim de promover debates e ações para deter essa ameaça.

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