Narciso à procura da câmera

“É que Narciso acha feio o que não é espelho”, diz Caetano Veloso, na música Sampa. Hoje, o espelho não é d’água. É eletrônico, é um celular smartphone. Esse é o novo espelho.

A avidez por se ver na tela de um terminal qualquer, seja da velha TV, seja de um celular, nas redes sociais, pode estar levando pessoas de todas as categorias, sem exceção, a delírios narcísicos sem precedentes.

Como se as maquinetas-espelho tivessem potencializando o afloramento de misérias humanas.

O delírio narcísico, ou de importância, como queira o freguês, parece estar contaminando também, da mesma forma, o mundo das autoridades, como uma peste social.

Muitos demonstram buscar os postos na hierarquia do serviço público não apenas para exercício cidadão da função pública, mas pelo que o status representa, para eles, na sociedade.

Exemplo disso são as patéticas cenas protagonizadas cotidianamente por autoridades que trabalham nas investigações dos escândalos de corrupção no Brasil.

Fruto de nefasto envolvimento entre imprensa oligárquica e órgãos de investigação, agentes públicos, à procura de câmeras, se acotovelam para alcançar posições ao lado do preso, mais visíveis para fotos de revistas e jornais, ou para filmagens das redes de TV.

Desprovidos de senso de ridículo, policiais trajam roupas de combate, empunham fuzis, como se estivessem indo para uma frente de batalha, quando, na verdade, estão apenas buscando alguém para prestar um simples depoimento.

Um dos agentes da PF, de feições orientais, tornou-se conhecido frequentador das revistas, dos jornais e dos telejornais.

Policiais, agentes do Ministério Público, convocam coletivas como se estivessem participando de um espetáculo, de um filme qualquer, desses enlatados dos Estados Unidos.

Como fez o Procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força tarefa encarregada das investigações da operação “Lava Jato”, ao convocar entrevista coletiva.

Outro procurador, Carlos Fernando de Santos Lima, diz querer, com o trabalho deles , “Refundar a República”, ou seja, o delírio narcísico e de importância andam pulsantes.

Pretencioso, o distinto procurador se posiciona acima dos demais poderes, como se, por canetadas, pudesse decretar a “Refundação da República”.

Admirável o momento pelo qual passa o país ao enfrentar a corrupção com órgãos de fiscalização e controle e recursos humanos, bem estruturados, respaldados pela nova Constituição e por leis, recentemente aprovados pelo Congresso Nacional, como a Lei do Corruptor, sancionada pela Presidenta Dilma, que está possibilitando prender empresários corruptos.

Mas é deplorável o comportamento de agentes públicos responsáveis por tão importante atribuição, conferida pela sociedade brasileira a esses servidores públicos. Faltam-lhes recato, cidadania.

Ao não respeitar o que prescrevem as leis e a Constituição, os direitos e garantias fundamentais, arriscam-se a se igualar àqueles que estão investigados. Estes ainda podem, ao fim e ao cabo, serem declarados inocentes. Já as ações – ilícitas – das autoridades não podem ser revertidas.

Aqui, prende-se, e o preso é quem tem que provar que é inocente. Juristas renomados estão preocupadíssimos com a violação das garantias constitucionais. Segundo eles, o ônus da prova foi invertido deliberadamente, sem nenhum amparo legal.

Juristas estão apontando erros processuais e de condução das investigações que podem comprometer a “Operação Lava Jato” e se tornar uma “Operação Satiagraha”, arquivada pelo Supremo Tribunal Federal devido a erros crassos na condução dos trabalhos.

Justamente no momento em que o país está preparado institucionalmente para enfrentar a corrupção, com os instrumentos necessários, autoridades se comportam de tal forma que sabotam a confiança da sociedade nas instituições.

A sociedade, em pleno estado democrático de direito, não pode se tornar refém de facções políticas encrustadas nos poderes da República.

Quem não gostaria de ver os malandros, parasitas de recursos públicos, na cadeia? Há quanto tempo se espera por isso?

Mas, nessa relação entre policiais, procuradores e imprensa oligárquica, com vazamentos seletivos, talvez para prejudicar certa corrente política, pode ser consolidado um perigoso grupo de pessoas “acima da lei”. Isso é tão grave quanto o conluio entre corruptos e corruptores. Investigar sim, tripudiar não.

A Constituição de 1988, chamada pelo Dr. Ulysses de “Constituição cidadã”, em razão dos avanços na conquista de direitos, pela sociedade brasileira, proporcionou ao Brasil uma institucionalidade avançadíssima, com os três poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário) estruturados por legislações que colocam o país na galeria das nações mais modernas do mundo.

Porém, a nação está padecendo de um descompasso entre as garantias constitucionais e as autoridades responsáveis pelo cumprimento dos preceitos constitucionais e das leis estabelecidas pelos representantes do povo.

As autoridades, guardadas as devidas exceções, estão aquém, muito aquém das instituições constituídas. Faltam cidadania, espírito público republicano, democrático, sobram despreparo, autoritarismo, prepotência e arrogância.

O Ministério Público e a Polícia Federal conquistaram autonomia, conseguiram recursos, equipamentos, fizeram concursos públicos, dispõem de sistemas de inteligência e de apoio de última geração para o exercício das suas funções, mas, pelo que têm demonstrado, parecem aquém da autonomia garantida às respectivas instituições.

Uma insuficiência, quem sabe, ancestral. O Estado brasileiro ainda está impregnado da cultura monárquica. A transição do Império para a República foi mais uma conciliação pelo alto, como dizia o mestre Florestan Fernandes.

Autoridades ainda se comportam como semideuses, como membros da corte, a serviço de El Rei, muitas vezes acima das instituições e das leis.

Servidores públicos, guardadas as devidas exceções, não costumam demonstrar que são servidores da sociedade, mas, uma casta privilegiada, detentora de estabilidade no trabalho e outras regalias. Entre os mais graduados, muitos se posicionam como aristocratas, descolados da sociedade, defensores do stablishment a qualquer custo.

Os concursos públicos precisam ser mudados, para deixarem de ser uma mera averiguação de conhecimentos da educação enciclopédica. A burocracia do Estado precisa de servidores cidadãos.

Governantes, parlamentares, juízes, procuradores, policiais, militares, servidores públicos, de forma geral, não costumam considerar-se prestadores de serviço público à sociedade, cada um com sua função pública. Seja serviço executivo, legislativo ou judiciário.

Muitos serviços são controlados por agências autárquicas, como é o caso do fornecimento de energia, telefonia, defesa do consumidor, enfim. Por que o serviço público ainda não tem uma agência de controle, como os demais serviços?

O Judiciário, o Ministério Público e a Polícia Federal, para não pairarem acima das leis e observarem com mais rigor a autonomia conferida pelos marcos legais, deveriam ter um controle externo.

Em nações de democracia avançada como os Estados Unidos, juízes são eleitos diretamente pelo voto. Aqui, juízes e procuradores são selecionados por concurso público, tornam-se burocratas do Estado.

Sem dispensar o poder fiscalizador do Congresso, que é o mais soberano dos poderes da República, por ter vínculos com a sociedade pelo voto direto, deveria ser constituído um órgão de controle externo do judiciário e dos órgãos auxiliares, com candidatos representantes da sociedade civil, eleitos por voto direto, de quatro em quatro anos, junto com a eleição presidencial.

Essa proposta é defendida por um movimento nacional de grandes juristas, defensores da democratização do Judiciário.

O descompasso entre autoridades e instituições pode estar relacionado com o fato de que a elite brasileira não se enraizou no país. Tem os olhos ainda voltados para além do Atlântico e para o hemisfério norte.

Isso talvez explique o fato de termos sido o último país da América Latina a abolir a escravidão; de sermos um dos últimos a criar a primeira universidade; de termos uma educação, por séculos, dominada pela igreja católica, que ainda adestra crianças e jovens para o mercado de trabalho e não forma cidadãos; de termos um Estado aristocrático, de vícios monárquicos; e um judiciário e Ministério Público burocráticos, discrepante da moderna institucionalidade do país.

Sem cidadania, não há democracia, não há República, não há Federação. Falta compromisso com a construção da Nação. Aqui ainda reina a mentalidade dos brancos europeus. Nossa independência ainda é uma pendência.

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