Senhor juiz: o direito à vida ou à morte assistida

 

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Neon Cunha é negra, de cabelos compridos, bem penteados, usa batom, brincos, esmaltes coloridos nas unhas, salto alto, tem corpo com seios adornados por roupas e adereços esteticamente preferidos por mulheres. Tem 44 anos, é profissional em designer. É uma mulher bem formada intelectualmente e corajosa. No início deste ano ela colocou o Judiciário em xeque com uma ação inédita.

Neon entrou na justiça com um pedido de retificação de registro civil e, ao mesmo tempo, garantia do direito a morte assistida, caso lhe seja negado o direito de ser como ela é.

O direito à morte assistida existe em muitos países europeus de cidadania avançada.

Neon se recusa a ser diagnosticada como portadora de “disforia de gênero”, classificada nos manuais médicos DSM/CID, pelo “poder médico”. Ela não quer fazer cirurgia, quer apenas ser respeitada e  reconhecida legalmente como ela é.

“Não quero passar pelo processo transexualizador e me submeter às regras impostas governamentalmente e socialmente”. Diz ela.

A onda conservadora, que está causando inadmissível retrocesso no Brasil, chegou a esse ponto, em que uma cidadã coloca a própria vida como condição para fazer valer direitos elementares, os mais importantes deles, o direito à identidade, à dignidade e à felicidade.

Os direitos garantidos pela Constituição e pelas leis do país estão sendo negligenciados por juízes, não só nas perseguições politico-partidárias recentes, decorrentes da articulação do golpe de Estado, mas ameaça cidadãos e cidadãs com negação de direitos inalienáveis, em razão de padrões morais particulares.

Não bastassem certos juízes, médicos e corporações também se arvoram em tomar decisões com base em um certo “poder médico”, constrangem e ameaçam direitos líquidos e certos ao negar ou retardar procedimentos legais.

O Estado, e muito menos corporações profissionais, não podem negar o direito à identidade. A sexualidade não é algo restrito à genitália.

O Estado não pode legislar sobre o domínio do corpo. O direito ao corpo é inalienável, é o direito à integridade, à personalidade, à dignidade, à intimidade e à saúde. A dignidade humana é um dos fundamentos da República.

Na Constituinte, o direito ao corpo foi amplamente debatido, mas os fundamentalistas religiosos não permitiram que constassem explicitamente no texto constitucional o direito à transgenia, à não transgenia, ao uso de drogas, ao aborto, ao suicídio, à eutanásia, à prostituição, ou seja, o direito à própria vida.

Diziam os conservadores, na Constituinte, que esses direitos estariam contemplados no artigo 5º e em outros dispositivos da Constituição. Mas estão até hoje sem regulamentação por leis ordinárias porque os conservadores não permitem. Eles são maioria no Congresso.

Até 1997, as cirurgias eram proibidas no Brasil. A partir de 2008, no governo Lula, um programa do Sistema Único de Saúde (SUS) possibilitou atendimento integral aos transexuais com acesso a hormônios, cirurgias, medicamento, e outros benefícios.

O fato é que a transexualidade e a transgenia ainda são consideradas, pela medicina, uma patologia intitulada “disforia de gênero”. Para ter acesso a hormônios, cirurgias e mudança no registro civil, as pessoas que estão providenciando a transição obrigatorimente precisam do humilhante laudo médico com diagnóstico, como se o desejo de optar por redesignação sexual fosse uma patologia.

Neon encara o atraso organizado, expõe as contradições do conservadorismo com uma atitude extrema, coloca dois direitos sobre a mesa do magistrado: o direito ao corpo e o direito à vida. Se lhe for negado o direito ao corpo que lhe seja garantido o poder de   dispor da própria vida, ou seja de não continuar viva se assim o quiser, por não aceitar a condição de vida imposta a ela.

Neom expressou sua indignação numa declaração contundente, que ecoa como um alerta a todas as mulheres que vivem drama semelhante, como se convocando à uma rebelião contra o conservadorismo. Diz ela:

 “… o que é a morte? É a não existência, é a ausência de vida. Do que adianta eu ser documentada? Sou uma morta-viva? A negação de direito à vida eu já tenho. A condição posta é essa: eu preciso ficar mendigando que os outros permitam que eu seja quem eu sou. Eu tenho 16 anos de consultório terapêutico. Eu converso sobre não querer ser patologizada. Eu não sou doente. Eu não tomo hormônio de jeito nenhum. Tomei por uns dois anos, mas é muito ruim, muito desconforto. Eu tenho que respeitar quem vai fazer, mas não é uma opção, é regra. Sou mais uma mulher lutando pelo direito à dignidade que todas nós merecemos e poucas têm acesso. Não há nada mais primário do que a garantia de dignidade, nem mesmo a vida. Não tenho medo da morte. Tenho medo de morrer sem dignidade. A morte assistida seria morrer com os meus queridos ao redor, saber que eu ia ser enterrada com o modelão que eu escolhesse”.

O atraso organizado vem semeando conflitos, sofrimentos, privações de direitos na sociedade brasileira, coincidentemente em pleno momento de realização da Olimpíada do Rio, considerada a que teve o maior número de atletas gays assumidos na história deste evento esportivo.

Um avanço extraordinário da afirmação da cidadania, da consciência da liberdade, da tolerância e do respeito aos direitos humanos.

Que o espírito olímpico permaneça aqui por muito tempo para ajudar a dissipar as brumas medievais que ameaçam o Brasil e pessoas como Neon, que lutam todos os dias por respeito a direitos elementares de serem felizes, com vida digna e bem adaptadas à redesignação de sexo livremente escolhida.

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