Macunaíma é meu pastor, nada me faltará

Curiosa essa perplexidade com a violência, quando  explode em ondas como a de agora. Ouve-se muito dizer que nunca antes na história deste país se viu coisa igual.

O senhorio posa de vestal, com o manto do “homem cordial”, um tipo que escamoteia a violência em templos religiosos e de consumo, forjando a felicidade do país tropical, abençoado por deus e bonito por natureza.

O povo brasileiro é violento e ponto. Chega de hipocrisia. Quando os brancos europeus desembarcaram nas praias brasileiras, como dizia o antropólogo Darcy Ribeiro, esfarrapados, desdentados, fedorentos, cheios de escorbuto, síflis, e sedentos por sexo, índios e índias viviam nus, em perfeita harmonia com mares, rios, florestas, em paz com sua divindade espalhada ao redor. Mas era um paraíso perigoso. Por aqui havia também algumas tribos de antropófagos, chegados a uma coxa humana suculenta. Comeram até o Bispo Sardinha.

Os católicos trataram de arrancar-lhes as crenças pagãs  e substituí-las pelo deus único. Instalou neles o pecado e a culpa. Foram ocupando as terras, corrompendo os “gentios” com badulaques, exterminando nações inteiras. O sangue correu por campos e florestas. Como índio “não tinha alma”,  diziam, na visão dos brancos europeus, virou esporte sair aos domingos para caçar nativos. Atiravam neles só para ver o tombo.

Tentaram, com os bandeirantes, escravizá-los à base do chicote. Como não conseguiram, partiram para a África, compraram os negros. Depois da vida de corsários, os ingleses se tornaram os maiores traficantes do mundo.

As marcas da barbárie continuam vivas. Tanto que a arquitetura “moderna” reproduz o modelo colonial, de Casa Grande & Senzala, nas residências brasileiras: sala, cozinha e dependência de empregados, um cubículo onde enfiam os trabalhadores domésticos. Além disso, o tratamento de “nós e eles”. Tudo isso encarado como “normal”.

Essa mesma violência, herança da escravidão, permanece nas relações sociais, principalmente no trabalho. Quem não conhece a exploração, o tratamento desumano, o assédio moral de patrões e chefes? Nas relações entre marido e mulher, entre pais e filhos? Quem não sabe de pessoas destruídas psicologicamente por assédio moral? Pessoas que vagam no dia a dia, no vai vem da casa para o trabalho, do trabalho para casa, tomadas por sofrimento pesaroso, provocado por humilhação e desqualificação.

Aqui vale uma ressalva: em partidos de esquerda, sindicatos e outras entidades, o assédio moral ocorre até com requintes de crueldade. Justo as organizações que se propõem como instituições de pedagogia política libertária. Há relatos inimagináveis. O educador Paulo Freire denominava isso de “opressão do oprimido”. Ou seja, muitos dos que sofreram opressão tendem a tornar-se opressores ainda mais violentos.

No Congresso Nacional tramitam projetos de lei para tipificar o assédio moral, mas grupos, sobretudo aqueles de apoio ao patronato, não permitem sua aprovação.

Violência, aplausos e negócios

Curioso também é que grande parte das pessoas que estão “assustadas” com a violência, por exemplo, não perdem uma luta de MMA, essa “rinha humana” que faz os espectadores vibrarem quando os lutadores são brutais. Quanto mais lambusados de sangue, mais a platéia vibra. As imagens fazem disparar a audiência nos meios de comunicação. Os donos de tv, portais, jornais, revistas e patrocinadores querem mais sangue, porque assim ganham muito mais dinheiro, movimentam seus negócios milionários

Muitos dizem que essa rinha é um esporte, que “educa”, que tem regras, mas não dizem que as regras foram feitas pelos próprios empresários que exploram os negócios dos eventos violentos.

O que se vê por aí são jovens adotando como referência os lutadores de MMA, cultuando o machismo e a violência como afirmação de virilidade. A referência de beleza agora é a aparência de mau, violento. Músculos e tatuagens alimentam o delírio narcísico, potencializado com a telinha dos celulares, que se tornaram espelhos hedonistas da modernidade.

Com essa estética ressurge um conservadorismo ancestral, medieval. E o que tem a ver a luta de MMA com a violência? A violência sob aplausos de torcidas aguerridas, aos gritos de: mata!… mata!… mata!…

Os mesmos assistem às missas e aos cultos aos domingos e às lutas de MMA, cada um com seu duplo. Nas torcidas de futebol, no trânsito, nos shows, nas festas, a violência explode, gera imagens chocantes para a felicidade dos donos dos meios de comunicação. Estes exploram os infortúnios e as lágrimas à exaustão, com posturas hipócritas, moralistas, de bom mocismo, para faturar ainda mais com a audiência. Uma retroalimentação que domina corações e mentes.

Nos programas de TV, apresentadores falam diretamente com cerca de 40 a 70 milhões de pessoas todos os dias, em comentários e editoriais, como se fossem autoridades no assunto. Muitos instigam à barbárie, como fez recentemente a apresentadora Shehearazade, do SBT, ao incitar a população à violência. Nas redes sociais, jornalistas a defenderam com unhas e dentes, num corporativismo cego, a ponto de a considerer uma “grande profissional”. O que se pode esperar desse jornalismo?

Enfim, a violência é latente, recrudesce em ondas coloridas de sangue, de tempos em tempos, e expõe a hipocrisia da sociedade.

Como disse o modernista Oswald de Andrade, “ninguém escapou da vagina fraudulenta e do pênis opressor”.

O mito do “homem cordial” , do grande historiador Sérgio Buarque de Holanda, se desfez. Por que não optamos por amarrar o jirau no firmamento, virado no brilho  inútil das estrelas”, como queria Macunaíma, nosso herói sem caráter, imaginado pelo escritor Mário de Andrade? “O balanço do ranger rede pode bem lembrar moda de viola”, dizia.

“Ai que preguiça!”

(*) Laurez Cerqueira é autor, entre outros trabalhos, de Florestan Frnandes – vida e obra; e O Outro Lado do Real.

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