A sociedade sob códigos empresariais e religiosos

Os sintomas são cada vez mais evidentes. A sociedade brasileira está sendo regida fundamentalmente por códigos empresariais e religiosos.
Valores que inspiraram a República e a Democracia estão se afogando na água turva que brota de fontes medievais. 

A democracia e as instituições estão ameaçadas pela força dos grandes negócios e das organizações confessionais com suas ramificações ideológicas, que solapam o Estado laico e a cidadania de forma assustadora, levando o país a retroceder, a ver aviltados direitos conquistados na história recente, inscritos na Constituição de 1988.

As igrejas se expandem no vácuo das deficiências da educação, da escola laica que não consegue se firmar como pilar da democracia, da cidadania e da República. O grande capital se impõe operando por meio dos imperativos ideológicos, econômicos e tecnológicos, monopolizando o tempo, a consciência, esterilizando vidas.

Partidos políticos e instituições populares, que historicamente promoveram a cidadania e as lutas libertárias estão, na prática, perdendo espaço para as igrejas. Tornaram-se reféns dos poderes empresariais e religiosos.

No Congresso Nacional essas forças atuam à luz do dia. Bloqueiam a aprovação de leis fundamentais para consolidação de direitos humanos, da laicidade do Estado, e de muitas outras iniciativas que teriam como finalidade ampliar as conquistas democráticas e a cidadania.

Igrejas tentaram impedir a aprovação até do Plano Nacional de Educação (PNE) por não aceitarem que as escolas abordassem a questão de gênero em sala de aula e, entre outras ações, apoiaram aberrações como a aprovação do projeto da “cura gay” na Comissão de Direitos Humanos, na época presidida pelo pastor e deputado Marcos Feliciano.

Bloqueiam a aprovação de todos os projetos de reforma política que põem fim ao financiamento empresarial de campanhas eleitorais porque o poder econômico e confessional não abrem mão do controle político do Congresso e dos governos. Aqui, vale ressalva à CNBB, que integra o conjunto de entidades que apóiam o projeto de lei da OAB, de reforma política.

As forças políticas empresariais e religiosas têm projeto de poder e estratégia. Pelo andar da carruagem, o risco maior é, em breve, efetivarem uma aliança suficiente para promover ampla reforma na Constituição, suprimir direitos e garantias consagradas ou até mesmo convocar uma Assembleia Constituinte e fazer outra Constituição de caráter teocrático e plutocrático. A continuar os ataques aos setores democráticos, a tendência é de um perigoso retrocesso institucional.

O poder das organizações empresariais e religiosas não são nenhuma novidade nas relações econômicas, sociais, culturais e políticas numa sociedade capitalista selvagem e de herança colonial como a nossa. Mas avança como nunca, turbinado com os oligopólios de mídia.

Na história recente, os anos 1990 foram o período de maior investida do grande capital na apropriação indiscriminada, quando aqui a campanha contra o Estado como induto do desenvolvimento se estabeleceu já no governo de Fernando Collor e ganhou força no governo Fernando Henrique Cardoso.

O Estado passou a ser o diabo e o mercado, Deus, senhor das soluções de todos os problemas do país.

Evidente que o Estado não é panaceia para solução dos nossos problemas. Se fosse não teríamos chegado ao Século XXI com cerca de 50 milhões de pessoas ainda vivendo na pobreza e a riqueza concentrada nas mãos de uma minoria opulenta que vive no topo da pirâmide social.

Até porque não há capitalismo sem Estado. Mas as investidas contra a “Constituição cidadã”, como a denominou o ex-presidente da Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, para suprimir dela garantias econômicas e sociais, tornou-se uma obsessão do poder econômico e das igrejas desde o início dos anos 1990, com Fernando Collor.

Ganhou uma dimensão inimaginável nos últimos tempos com a expansão de meios de comunicação, novas tecnologias, conglomerados empresariais de mídias, e a adesão voluntária de setores das classes média e média-alta a ideais neoliberais e religiosos.

Empresas que monopolizam as concessões do Estado, de meios de comunicação, como, por exemplo, as organizações Globo, cujos proprietários se tornaram os mais ricos do país, segundo a revista Forbes, assumiram publicamente em recentes editoriais em tv e jornais, que apoiaram o golpe civil-militar em 1964, mas não disseram que apoiaram a ditadura durante 21 anos.

Cinicamente pediram desculpa ao país e agora apostam todas as fichas na definição do pleito eleitoral deste ano apoiando desavergonhadamente, juntamente com os donos do grupo Abril, do grupo Folha, do grupo Estado, e outros, o candidato escolhido por setores do capital financeiro nacional e internacional para que possam retomar o projeto interrompido em 2002 com a eleição de Lula.

Guardadas as devidas exceções, a grande mídia tornou-se uma espécie de “Feitor”, de chicote em punho, dos grande negócios, pregadora ideológica do projeto do grande capital e das religiões.

Submete instituições ao açoitá-las com suas manchetes. Constrói versões de fatos com o jornalismo manipulativo e se estabelece como instrumento político dos grandes negócios na coação do poder republicano e democrático.

Como fez com o Ministério Público e o STF no episódio do julgamento dos réus da AP-470 ao transformá-lo num espetáculo midiático.

A maioria do STF, sob a presidência do ministro Joaquim Barbosa, se curvou ao “Feitor”. Se curvou à versão dos fatos. Imagina se o STF tivesse absolvido os réus por falta de provas. Estaria hoje na vala de esgoto da história.

A manipulação da informação corre solta, opera no subliminar, instala nos confins dos corações e das mentes dos desavisados o ódio, preconceitos generalizados, a negação da política, como se a política fosse para a sociedade o mal dos novos tempos.

A cidadania está sendo sorrateiramente esterilizada, o debate interrompido e a participação da sociedade nas decisões, na escolha do futuro, desmobilizada.

As manifestações de junho parecem ter sido muito mais um fenômeno das redes sociais, principalmente do Facebook.

Tanto que os manifestantes, passado o furor, não se organizaram, não se associaram para outras jornadas. Nada de novo aconteceu. O que se viu foi uma desconfiança generalizada de que os usuários foram vítimas de algo estranho. Esse sentimento foi manifestado em grande escala, logo depois, nas redes sociais.

O que querem com a tentativa de destruição da política? Que todos baixem as cabeças, trabalhem, consumam, e deixem o futuro nas mãos do mercado, o “senhor dos destinos”? Como despertar a nova geração para a política se a política, como querem impingir os manipuladores, representa “o mal para a sociedade?”.

A política é a mais perfeita invenção do ser humano para resolver os problemas da sociedade e do Estado, para fazer avançar no processo de civilização. Matar a política é matar a democracia, a cidadania e o desenvolvimento.

As grandes redes de tv/rádio, os portais de internet, ganharam níveis de alcance e sofisticação inimagináveis com a expansão e os novos recursos tecnológicos.

Os donos das grandes empresas de comunicação, na política, têm lado, usam e abusam das concessões a favor de suas ideologias, de seus negócios e de seus correligionários, sempre foi assim. Chega de hipocrisia. Isso é uma realidade.

As concessões de canais de serviços de rádio e tv passam de pais para filhos como capitanias hereditárias. As empresas se agigantaram e se tornaram as mais poderosas armas para a manutenção do poder econômico e político no país.

Nenhum governo, em 26 anos da nova Constituição, ousou regulamentar os artigos 221 e 222 da Carta Magna, que definem a prestação de serviços de comunicação.

O monopólio dos meios de comunicação continua intacto. Esses veículos são, na sua grande maioria, das mesmas famílias que manipularam o povo e levaram Getúlio Vargas ao suicídio e multidões às ruas para derrubar o ex-presidente João Goulart, em 1964.

São os mesmos grupos que hoje atuam, na política, em parceria com a oposição ao governo, e formam a opinião de gerações.

O atraso organizado retoma posições semelhantes às de antes do golpe militar de 1964. Quem tiver curiosidade histórica pode ir aos arquivos dos jornais daquela época para ver a semelhança da forma pela qual a imprensa de hoje, que serve à oposição, trata o governo atual, com a imprensa que derrubou o ex-Presidente João Goulart.

Em outras palavras, “a UDN saiu do armário”, mostra a cara com ranço conservador e ideológico inimaginável, numa clara reação pela manutenção do status quo a qualquer custo.

A reação dos setores conservadores é visível no ódio de classe que permeia as relações sociais, trazendo à tona conflitos ancestrais da colonização, cristalizados na disputa política e no medo da perda de poder no atual ciclo de democracia. Na democracia eles perdem sempre.

É perceptível, na histeria cotidiana, a gana pela ressubordinação dos trabalhadores, que estão se libertando do domínio da aristocracia senhorial. Querem recolocá-los nos lugares de antes, colocá-los para fora dos shoppings, como fizeram no episódio dos “rolezinhos” em São Paulo, com decisão judicial; para fora dos aeroportos, como desejou a “glamourosa” professora de letras da PUC-Rio ao ver um senhor saboreando um sanduíche na sala de embarque; para fora do salão de beleza, como tentou uma moradora de um condomínio de luxo em Brasília, ao ver a empregada doméstica de uma amiga cuidando das unhas e dos cabelos no mesmo salão frequentado por ela.

A reconfiguração de classe está levando a arquitetura a mudar a ordem residencial colonial. O modelo sala, cozinha e dependência de empregados (senzala) não cabe mais na realidade brasileira.

Estão tendo que retirar a senzala de dentro de casa, cubículo onde famílias senhoriais enfiam os empregados domésticos. Os empregados domésticos conquistaram igualdade de direitos com a “lei das domésticas”. Ou seja, tudo junto e misturado está causando um grande incômodo à elite.

Essa obsessão da oposição, e da mídia que serve a ela, pela destruição do Partido dos Trabalhadores, por exemplo, não é de agora. O PT sempre foi tratado como um intruso na política brasileira desde quando nasceu, no final dos anos 1970.

A elite não o perdoa, por ter sido capaz de organizar a base da pirâmide social e dar voz e ação aos trabalhadores.

Garantiu um governo que aprofundou a cidadania, cria condições para libertação da população oprimida do domínio de aristocratas, exploradores e opressores de todo tipo; retira da pobreza extrema dezenas de milhões de pessoas, reduz a desigualdade em tempo recorde, como reconheceu a ONU, e promove a inclusão social com acesso aos serviços públicos. Sem desconsiderar os demais partidos de esquerda, PT é o que restou de maior força organizada da luta democrática do pais.

Tristes trópicos, que tem uma elite branca que sequer admite a construção da cidadania. Ela continua desenraizada, com os olhos para além do Atlântico e para o hemisfério norte. De mentalidade ainda colonial, se interessa apenas pelos grandes negócios na colônia.

A “velha UDN” está por aí, travestida, clandestina. Dispõe ainda de uma cultura política e ideológica poderosíssima. Hoje, nos salões, nos cafés, nas redações, ricaços, celebridades, artistas, jornalistas, âncoras de TV e de rádio, comentaristas, pessoas expressivas dessa tendência, diria, exemplares da nova versão da UDN, pessoas muito bem pagas, fazem a pregação conservadora.

Têm microfones e câmeras à disposição para destilar preconceitos generalizados e ódio contra os agora empodeirados pela participação popular na política, nos movimentos das últimas décadas, e incluídos socialmente.

Comentaristas de economia malham o governo dia e noite, nas grandes redes de TV, radio e jornais, com um discurso surrado, atrasado, da década de 1990, fora do contexto, na defesa cega de ideias derrotadas, superadas na crise internacional.

Organizações empresariais multinacionais, principalmente do sistema financeiro, não admitem que nenhum pais de porte econômico como o Brasil esteja fora da malha e da estratégia de negócios delas.

Por ter conseguido, em parte, certa autonomia, com um projeto de desenvolvimento sustentável, tendo o Estado como indutor, o Brasil sofre uma ofensiva virulenta dessas organizações, que tentam reconduzi-lo aos desígnios do sistema financeiro internacional com a ajuda de gente daqui, operadores do mercado financeiro, donos de grandes corretoras de fundos de grandes negócios dos maiores conglomerados internacionais.

Para eles, o Estado é o inimigo número um. Têm um candidato à Presidência da República e prestam assessoria a ele. Vêem as imensas jazidas de petróleo, recém-descobertas na camada do pré-sal, como as maiores oportunidades de negócios do país e do mundo fora da malha do sistema financeiro internacional e a Petrobras como entrave por controlar a produção.

O senador Aécio Neves bradou no dia do lançamento da sua candidatura à presidência da República que quer varrer o PT do poder com um tsunami. Diz ele que quer tirar o PT porque o PT ocupa órgãos do Estado. Disse isso deixando claro sua visão patrimonialista que considera o Estado uma propriedade da Elite.

Ou seja, a “Casa Grande” mandou um recado à “Senzala”.

Resta aos setores democráticos da sociedade brasileira defender intransigentemente a Constituição, a República, a Federação, articular um movimento capaz de deter o avanço das forças dos grandes negócios, das religiões e dos “feitores” da grande mídia, para que possamos avançar na consolidação da democracia, na superação da desigualdade e na inclusão social.

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