“A esperança é a última que mata”
Este verso do poeta brasiliense, Nicolas Behr, do seu livro Iogurte com Farinha (anos 70), parece traduzir o sentimento de grande parte dos militantes do PT neste momento. Principalmente daqueles que surfaram na onda que se ergueu nas ruas e se espatifaram nas instituições da república senhorial. Quem não tinha clareza da estratégia pode estar sofrendo mais, pois para eles parece que o sonho acabou.
Aqueles que se dedicaram aos núcleos de base do partido, no final dos anos 70 até os anos 80, e se firmaram na construção de uma estrutura pedagógica realmente libertária, foram abandonados no caminho pelo expresso apressado, que partiu direto do ABC para o ano 2002, como se a presidência da república senhorial fosse o fim da linha da história.
Os que resistiram à burocratização partidária, agora se erguem das cinzas como Fênix. Afinal, o Brasil não conquistou a verdadeira República democrática. Sequer conseguiu a abolição, pois a conciliação pelo alto, como dizia o professor Florestan Fernandes, predominou nos momentos de ameaça de ruptura pelos de baixo.
A “tática” de ocupar espaços nas instituições e transformá-las por dentro, como preconizado nos primeiros anos do PT, foi dando lugar ao carreirismo político. O partido foi sendo tragado pela burocracia estatal. As teses dos teóricos libertários, de que as forças da cultura do Estado burguês são poderosas, domesticam os rebeldes e na maioria das vezes os transformam em agentes dissipadores da rebelião de classe, parece confirmada nesta crise. Poucos continuaram fieis à construção de outra ordem, que não a vigente.
A disputa por cargos de prefeito, vereador, deputado estadual, federal, senador, governador, e depois presidente da República, tornou-se o objetivo maior do movimento. Sindicatos e outras entidades foram utilizados como trampolins para mandatos eletivos.
Os mandatos eletivos, na sua maioria, privados, (pessoal de fulano, pessoal de sicrano, no jargão interno do PT), em muitos casos funcionam como condomínios de interesse. Perderam a liga coletiva e se transformaram em instrumentos de barganha política. Nos debates e decisões internas já se sabe com antecedência os discursos e os votos de cada um.
A crise partidária é grave e o momento é de ruptura dessa estrutura viciada. Apesar de tudo isso, não há como negar que o PT teceu uma cultura política nova no país. O PT, sem demérito dos demais partidos da esquerda, cumpre uma importante função pedagógica suplementar ao sistema educacional oficial na sociedade ao participar decisivamente do processo de aprofundamento da democracia e da promoção da cidadania. A intolerância da sociedade com a corrupção, em grande parte deve-se ao trabalho do PT na luta pela democratização do Estado.
A crise do PT, que atingiu o governo Lula, não é um fenômeno recente, isolado. Toda a institucionalidade, nos seus mais variados níveis, passa por um momento difícil. Lula foi eleito com o que restou da estrutura dos movimentos sindical e popular construídos nos anos 70 e 80, e, evidentemente, com o financiamento do empresariado de diversos ramos de atividade, duramente atingidos pela abertura econômica promovida pelos governos da década de 90.
É cada vez mais dramática a situação das centrais sindicais, dos poderosos sindicatos, que mobilizavam multidões no passado. Os movimentos pulsantes e ascendentes daquele período foram dando lugar a corridas eleitorais, com exceção de alguns movimentos como o MST, que se mantém numa perspectiva de rebelião permanente. Os movimentos vivem o dilema de apoiar o governo Lula e condenar sua política econômica. Isto porque, segundo integrantes do governo, o projeto econômico original debatido pelo partido foi abandonado em razão das dificuldades políticas para se governar.
A professora Maria da Conceição Tavares e outros grandes economistas da mesma linhagem que participaram ativamente da formulação do projeto econômico do governo Lula, a certa altura, desistiu do debate, pois viu ganhar força a política econômica que ela contestou no governo Fernando Henrique Cardoso. Portanto, o projeto econômico de economistas como ela, Aloízio Mercadante e outros, não é o que está em execução. Queriam uma política econômica de pleno emprego, perfeitamente viável. Mas, apesar deste desgosto, quando o governo Lula é atacado por quem quer que seja, Conceição responde aos críticos com uma frase, segundo ela, vista numa faixa empunhada numa manifestação de apoio ao governo Salvador Allende, no Chile, nos anos 70: “Este es un gobierno de mierda, pero es mi gobierno, mierda!”.
Outro aspecto da eleição de Lula, que pouco se comentou, é que um percentual importante dos votos que o elegeu veio de setores da classe média e média-alta, depois de intenso trabalho do partido, na tentativa de desconstruir o preconceito que havia em relação a Lula e ao PT. Segundo as pesquisas, esse setor foi o primeiro a descolar logo no primeiro ano de governo, devido à reforma da previdência, aumento da taxa de juros para conter o consumo, e, recentemente, após a onda de denúncias de corrupção. Esse eleitorado parece ter feito uma concessão ao votar no operário candidato.
Com o que restou da estrutura do movimento social dos anos 70 e 80, Lula montou uma mesa de negociação para tentar viabilizar um projeto de inclusão social abrangente, com o empresariado e com a elite conservadora, mantendo a política econômica do governo Fernando Henrique Cardoso e até radicalizando mais em certos aspectos, como o superávit primário e as metas de inflação. Lula tenta construir um mercado de consumo interno com a irrigação da economia através dos recursos dos programas de transferência de renda. Mobiliza volumosos recursos nacionais e internacionais para a construção da infra-estrutura de desenvolvimento econômico (energia, portos, ferrovias, estradas, etc.) que ficou sem investimentos adequados ao longo de duas décadas.
Enfim, fez-se concessões até demasiadas na expectativa de que seria viável um governo de diálogo e de união nacional para superação das dificuldades, principalmente as econômicas e sociais que chegaram a uma situação dramática. O que se percebe é que a maioria da elite política e empresarial parece não compreender o país que vive, qual a dimensão real da crise política e para onde ela evolui. O comportamento da imprensa corporativa nesta crise, salvo raras exceções, demonstra isso.
Entre outros órgãos de imprensa, merece destaque a sanha golpista da revista Veja. As denúncias estão sendo utilizadas como pretexto para destruição da maior organização política construída pelos de baixo¿ no Brasil, e do seu líder maior, Lula. No poder, certamente, o tratamento dispensado ao PT e ao seu governo, não seria diferente.
O fato é que o PT sempre foi tratado como um intruso no cenário político nacional. Nasceu nas ruas sob nuvens de gás lacrimogêneo, rompendo cercas no campo e sobrevivendo à ferocidade da grande imprensa. Mas muitos petistas alimentavam ilusões de que em plena vigência do estado democrático de direito instituições democráticas como o PT, a CUT e o MST seriam respeitadas pelos de cima.
Esta crise está deixando uma lição para os de baixo: enganam-se aqueles que preconizam o fim da luta de classes. O Brasil é um país continental e complexo, urbanizado, com uma configuração de classes nitidamente marcada pela desigualdade. Caso a crise continue alimentada por denúncias infundadas contra governo Lula, não sobrará alternativa para o campo da esquerda, que não à radicalização dos movimentos. O quadro político que começa a se esboçar para o futuro é de rompimento com o diálogo.
Está ficando claro que a tentativa de diálogo com os de cima é uma perda de tempo. Não vivemos mais numa Guerra Fria.
Enfim, não se deve perder a perspectiva de que isto é uma luta e os campos estão sendo demarcados. Resta saber de que lado cada um está lutando e se está lutando bem ou mal. Tudo indica que estamos caminhando para o que sintetizou a cantora Cássia Eller em uma de suas músicas: “Defenda teu pão no pau, marginal!”.