O rolê do cuscuz pelo mundo
“Da tradição quero apenas o fogo, a cinza não me interessa”. Li essa frase não sei onde. Perdoe-me autor e leitores, mas não poderia deixar de citá-la. Afinal, a gente quer a chama, que ilumina.
Antropofágicos que somos, cultuamos os ancestrais reinventando a tradição. Comemos de tudo, até Bispo Sardinha. Também, aqui, come-se iogurte com farinha. Cuscuz com uma cervejinha…
“Aqui, em se plantando tudo dá”, está na carta de Caminha. Além das sementes, plantas e árvores que haviam por aqui, foram chegando outras de diversos cantos do mundo.
Carmem Miranda sambou Tico-Tico no Fubá, com todo esplendor, para o mundo ver, com a coroa de frutas na cabeça, originárias de África e Ásia, como nossa “Rainha Antropofágica”.
Não há como falar das coisas de nossos ancestrais sem desenrolar o novelo da história e visitar a África, onde o homo sapiens começou. “Mama África é mãe solteira”. Salve Chico Cesar!
Visitar nossos ancestrais mais distantes no tempo é ir às raízes das culturas dos mais antigos povos do mundo, é mergulhar na herança africana, que povoa corações e mentes.
O cuscuz veio de lá, da África, da região saariana, da Argélia, do Marrocos, cruzou o estreito de Gibraltar e entrou na península ibérica. Era feito de sêmola.
Veio para a América, tempos depois, com os escravos originários da Guiné e de outras regiões da África ocidental, que também tinha o cuscuz como alimento tradicional. Cruzou o Atlântico nas naus, no ciclo das grandes navegações.
Quem sabe poderia ter tomado outro rumo, não fosse a escola de Sagres, onde se aperfeiçoou a bússola, o astrolábio, o quadrante, se inventou a vela triangular, que possibilitou aos navegantes viajarem em zigue-zague até atracar na costa da América? Dizem alguns pesquisadores que o cuscuz serviu de alimento para as tripulações das naus.
Nossos índios estavam aqui lagartixando nas praias de areias branquinhas e águas cristalinas, em perfeita harmonia com a natureza. Quando surgiram no horizonte do mar azul, nas caravelas, os brancos europeus, barbudos, esfarrapados, desdentados, escalavrados, cheios de escorbuto, famintos,(como dizia Darcy Ribeiro).
Além disso, tarados por sexo, com seu Deus único, e, num estandarte, o filho Dele pregado na cruz.
Os brancos europeus violentaram corpos e espíritos dos nativos.
Dominaram os índios com quinquilharias, principalmente com as ferramentas. Nossos índios não dominavam a forja.
As ferramentas, deixadas com os homens brancos em pontos espalhados pelo litoral, do norte ao sul, foram utilizadas não só no corte do pau-brasil, para carregar os navios e zarpar para a Europa, mas na agricultura.
Os caciques encantados com machados, enxadas e foices, eram chantageados pelos galegos. Exigiam as jovens índias em troca do uso das ferramentas. Com isso os cunhados, considerados membros da famílias, eram escravizados, trabalhavam de graça para os brancos. Darcy Ribeiro dizia que a família brasileira nasceu assim, com o “cunhadismo.
Com as ferramentas, as culturas de milho e mandioca se espalharam. E o cuscuz passou a fazer parte das mesas de refeições das famílias brasileiras país afora.
Além do litoral, subiu montanhas e rios. O cuscuz foi ganhando, pelo caminho, características próprias, de mãos de pessoas de cada lugar aonde chegou. Há cuscuz carioca, baiano, mineiro, paulista, enfim, há cuscuz por toda parte.
Além do Brasil, o cuscuz também é saboreado em vários países da América Latina. Na costa da África, nas ilhas de Cabo Verde, o cuscuz é um bolo tradicional feito com farinha de milho, cozido no vapor, num recipiente de barro, lá chamado binde, uma espécie de cuscuzeira de barro muito utilizada ainda nos rincões do Brasil.
No Brasil, uma das histórias sobre a origem do cuscuz diz que tropeiros e boiadeiros, que viajavam longas distâncias a cavalo, costumavam carregar matulas feitas de farinha de milho ou de mandioca misturada com pedaços de frango ao molho ou carne de gado, em bolsas de couro, amarradas na parte traseira das selas dos animais.
No contato com o corpo quente do cavalo, mais o chacoalhar do passo viageiro, a mistura dava liga e na hora do almoço, nas sombras das árvores, na beira de um rio, abria-se a matula e lá estava o cuscuz pronto.
Outra versão diz que o famoso “Cuscuz Paulista” surgiu de mãos caiçaras. Há quem diga que os italianos também participaram da invenção, mas há controvérsias.
Caa-içara é uma palavra de origem tupi-guarani, que denomina os habitantes de origem miscigenada e que viviam inicialmente da pesca na região costeira entre Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná.
O povo caiçara surgiu no século XVI dos casamentos de europeus, índios e negros libertos, que se recusaram a viver nos centros urbanos. Os caiçaras formaram uma das primeiras culturas do Brasil pós-descobrimento e tinham o costume de trabalhar em mutirões, chamados de “Adjutório”.
Preparavam as roças para o plantio, as colheitas e as puxadas de canoa das florestas para os sítios. No final do dia o anfitrião do sítio preparava como compensação uma festa. Os trabalhadores comiam e se divertiam com a dança do fandango. O cuscuz participava da festa.
Por incrível que pareça, o fandango é uma dança originária da Espanha. Possivelmente chegou a Portugal naquela promiscuidade da Igreja Católica na Península Ibérica – quando se juntaram na resistência contra o domínio dos Mouros – deve ter escapado dos domínios morais, embarcado nas naus, no ciclo das grandes navegações, e se espalhado pela América Latina.
No dicionário Aurélio, fandango significa “Auto ou representação popular em torno de uma embarcação a vela a porto.”
Como diz Arnaldo Antunes, numa de suas músicas, “A gente não quer só comida/A gente quer comida, diversão e arte…”.
O milho, o principal componente do “Cuscuz Paulista”, surgiu há milhares de anos, em solo centro-americano. Segundo pesquisadores, há pelo menos 7 mil anos.
Era cultivado em tempos pré-colombianos nos planaltos do México e se espalhou rapidamente ao Norte até a barra de São Lourenço, uma região olmeca, situada no oeste mexicano. Ao Sul até o Prata e a Oeste até o Amazonas.
Não só era o mais importante alimento dos Astecas, Incas e Maias, como também fazia parte das celebrações de cunho religioso. Até o descobrimento da América, em 1492, os europeus não sabiam da existência do milho.
Quando Cristóvão Colombo levou algumas sementes para a Europa, em 1493, os botânicos ficaram impressionados com a planta.
Hoje o milho é alimento em praticamente todas as partes do mundo. E não apenas alimento. Faz-se dele até combustível para carros. Ainda mais nos dias de hoje, quando se tenta limpar a matriz energética.
Dada a importância para a humanidade, em diferentes culturas surgiram muitas lendas sobre o milho. Uma delas, a dos nossos índios Guaranis, diz que, em tempos idos, quando os índios viviam muito afastados uns dos outros, cada família devia buscar o sustento na caça ou na pesca.
Uma lenda Guarani diz que certa vez dois caçadores, que viviam juntos e eram os únicos que ajudavam na caça, costumava repartir o que conseguiam entre si e suas famílias.
Certo dia, quando foram pescar, um deles disse: – “Será que “Nhandeyara”, o Grande Espírito que cuida das aves do céu e dos animais da terra, para nos alimentar a nós e a nossos filhos, semearia por sobre a terra outros tipos de alimentos mais fáceis de colher?”
(…) “Os frutos silvestres têm curta estação, a caça e a pesca costumam faltar. Muitas vezes nos sobram raízes de plantas e grelos das palmeiras para nosso sustento.”
A conversa dos dois amigos durou um bom tempo. A pesca, naquela fase, não fora suficiente para alimentar a toda a gente das famílias.
Na manhã do dia seguinte, os dois caçadores, armados com seus arcos e flechas, embrenharam na mata, andaram o dia inteiro e não conseguiram nenhuma caça naquela lua.
Na boca da noite, desolados, assentados sobre um tronco perto da entrada da oca, os dois amigos viram, assustados, um guerreiro, surgido da escuridão, todo envolvido em raios de luz.
A aparição disse ser enviado de Nhandeyara, que tinha escutado a conversa deles e que estava ali para proporcionar-lhes o alimento que lhes faltava. Mas, com uma condição: só conseguiria o alimento se lutassem com ele, um de cada vez, para ver qual deles era o mais forte.
O que fosse derrotado teria que ser sacrificado e enterrado perto da cabana. E que da sepultura nasceria uma planta, que daria frutos suficientes para sustentar, todo o tempo, as duas famílias e a quantos a cultivassem.
Os dois amigos aceitaram o desafio e em seguida começou a luta no pátio.
O mais fraco, de nome Avaty, foi sacrificado, com o lamento do amigo sobrevivente, pela inevitável separação, e o estranho guerreiro desapareceu na escuridão da noite.
O mais forte tinha que trabalhar de sol a sol nos campos para cultivar o alimento indispensável para a sua família e a do amigo.
Tempos depois, as famílias foram surpreendidas quando viram brotar do túmulo de Avaty uma planta de muitas folhas verdes e espigas amarelas.
O caçador viu cumprida a promessa feita pelo guerreiro misterioso e compreendeu a sabedoria de Nhandeyara, que pode sacrificar um homem de bem para o bem de todas as outras criaturas.
Desde então, os Guaranis passaram a denominar aquela planta de “Avaty”, em homenagem ao índio sacrificado.
Os nativos passaram a cultivar suas roças e, nos rituais da colheita, passavam as espigas de mão em mão, como símbolo da união e da amizade.
Para eles, um bom índio não pode esquecer que a abundância proporcionada pelo milho, que serve de alimento aos homens e animais, provém do sacrifício de um amigo fiel.
Assim como essa, há muitas outras lendas na América. O fato é que os Guaranis, que depois vieram a ser Caiçaras, com o processo de miscigenação, estão na raiz da história do Cuscuz Paulista, tido como alimentação de famílias pobres, que circulava entre consumidores modestos.
Por ser vendido em tabuleiros, por filhos e netos de cuscuzeiros anônimos, o cuscuz demorou longo tempo até chegar à mesa das classes sociais, média e média-alta.
O que faz a diferença dos demais cuscuzes são os ingredientes.
Os frutos do mar, como camarão, peixe e outros recheios, foram introduzidos pelos pescadores caiçaras na receita do cuscuz, servido em mesas de famílias simples ou em restaurantes sofisticados, como iguaria.
Com uma rica história, repassada de geração em geração, o cuscuz, com seu devido valor, faz parte do mosaico que compõe o patrimônio cultural do Brasil .