“A vida não é filme, você não entendeu”

 

 

 

O calor e a seca do início de setembro em Brasília torra tudo. Árvores peladas, muitas delas, por incrível que pareça, com belas flores nas pontas dos galhos.

 

Pessoas, como répteis serpenteando caminhos poeirentos nos gramados pardos da Esplanada dos Ministérios.

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Na cabine do avião (Congresso, Planalto e STF), traçada no Plano Piloto da cidade por Niemeyer e Lúcio Costa, altas temperaturas políticas e fortes turbulências.

 

No Legislativo, os presidentes da Câmara e do Senado, Eduardo Cunha e Renan Calheiros ardendo no mármore quente dos escândalos de corrupção, reagem desacatando órgãos de fiscalização e controle, chantageando o governo, submetendo-o a seus desígnios.

Na Câmara dos Deputados, o major e deputado José Augusto Rosa presidiu uma sessão da tarde, trajando seu uniforme cinza da polícia militar do Estado de São Paulo, carregado de penduricalhos dourados nas ombreiras, no colarinho, lapelas e punhos, nos cordões brancos e medalhas..

 

Acomodado na cadeira da presidência da Casa, estufou o peito, franziu o cenho e concedeu a palavra, em tom de comando, ao deputado, também policial militar e evangélico para fazer seu discurso.

 

Na tribuna, com sua pança proeminente roçando o púlpito, e lendo o discurso com dificuldade, o deputado, em altos brados, exaltava a “bravura” dos vereadores conservadores de São Paulo, liderados pelo vereador Eduardo Tuma (PSDB), e de vários municípios do Estado, por não terem permitido constar na lei dos Planos Municipais de Educação, o que ele chama de “ideologia de gênero”.

 

Ele comemorava a censura, o impedimento a professores de abordar em sala de aula a questão de gênero. Ou seja, o deputado defendia o que poderia ser denominado, também, “ideologia homofóbica”, muito bem difundida por Jair Bolsonaro.

 

O capitão e deputado é conhecido pelos seus arroubos nazifascistas e por seus correligionários, agora no recém fundado Partido Militar Brasileiro (PMB), o primeiro partido de direita assumido publicamente, cujo número, segundo o deputado major José Augusto Rosa, está para ser escolhido.

 

Pode ser, segundo ele, 38 ou 64, em homenagem, respectivamente, ao revólver, famoso “trezoitão”, e ao golpe militar de 1964.

 

A cada repetição da expressão “ideologia de gênero”, pronunciada pelo policial deputado, na tribuna, o presidente da sessão, do alto de sua patente e de sua ideologia, ostentando o uniforme militar, se mexia e se acomodava na cadeira do presidente da Câmara, balançando seus penduricalhos dourados.

 

Deputado Major Deputado Augusto Rosa

A cena, naquela sessão da tarde, estampava um retrato fiel da decadência do Congresso Nacional: as bancadas da bala e da bíblia fundidas na forja medieval.

 

Essas bancadas, junto com a ruralista e do business, estão roendo a Constituição como ratos, subtraindo conquistas dos trabalhadores, direitos sociais, avanços e garantias da cidadania conquistados no final da maior jornada democrática do Brasil, que botou por terra 21 anos de ditadura torturadora, subordinada aos Estados Unidos.

 

Além da roeção de direitos sociais e da aprovação da “reforma política”, patrocinada pelo deputado Eduardo Cunha, que constitucionaliza o financiamento das campanhas eleitorais por empresas privadas, e da aprovação da redução da maioridade penal, essa gente quer muito mais.

 

Entre muitas outras propostas, quer aprovar uma Emenda Constitucional que concede às associações religiosas a capacidade de propor Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) ao Supremo Tribunal Federal. Uma ofensiva inadmissível das religiões sobre o Estado laico.

 

Quer instituir o estatuto da família, retroceder ao patriarcalismo primitivo, proibir a união civil de pessoas do mesmo sexo.

 

Quer mudar o estatuto do desarmamento, para permitir que todas as

pessoas possam ter uma arma, como apregoa membros da Comissão Especial. Há suspeitas de que essa mudança no estatuto visa ampliar os negócios das empresas fabricantes de armas.

 

Quer a chamada “PEC da morte”, que acaba de vez com a demarcação de terras indígenas e estabelece o predomínio de fazendeiros, mineradoras e outras atividades, na exploração de terras.

 

Na mesma linha de retrocesso, o deputado Cabo Daciolo, eleito pelo PSOL/RJ, mas expulso do partido, apresentou uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que retira do Preâmbulo da Constituição a expressão “O poder emana do povo” e coloca no lugar “O poder emana de Deus”.

 

Os roedores da Constituição intensificaram a ofensiva. A Câmara tem hoje instaladas 43 Comissões Especiais para discutir e votar mudanças da Constituição e em leis especiais. Das 47 comissões, 17 são exclusivamente para mudar a Constituição.

 

Daquela mesma cadeira ocupada pelo major e deputado José Augusto Rosa, que presidiu a sessão da Câmara trajando seu uniforme militar de penduricalhos dourados, Ulysses Guimarães, como regente de uma orquestra, comandou o Congresso Nacional Constituinte, bancou a construção da “Constituição Cidadã”, como ele bem a denominou, por estarem inscritas nela garantias fundamentais da cidadania e uma das institucionalidades mais modernas do mundo.

 

Uma Constituição que, apesar de ter deixado a desejar na questão da terra, da função da propriedade, na definição de empresa nacional e outras questões, garantiu avanços extraordinários da democracia, eleições livres em todos os níveis, participação popular no destino político do país, provimento dos serviços públicos, promoção da igualdade de direitos de todas as categorias, dos direitos humanos na sua plenitude, direito à educação, à saúde, meio ambiente, o direito à segurança alimentar, que o ex-presidente Lula fez valer com o Bolsa Família, tirou cerca de 40 milhões de pessoas da pobreza extrema e o Brasil do Mapa da Fome, da ONU, entre muitos outros avanços que a sociedade brasileira não pode permitir que sejam suprimidos.

 

Daquela mesma cadeira da presidência da Câmara, Ulysses Guimarães fez um dos mais brilhantes discursos, no dia da promulgação da Constituição.

 

Num dos trechos, disse (clique aqui):

“Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério.

 

Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos por imposição de sua honra.

 

Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania aonde quer que ela desgrace homens e nações. Principalmente na América Latina.

A Constituição garante uma estrutura institucional moderna, mas o país vive uma situação dramática de déficit de cidadania. Faltam autoridades à altura das instituições. O sistema de representação política está esgotado e os concursos público não selecionam servidores cidadãos, que tenham conhecimentos além do enciclopédico.

 

Os governos não proveram a educação de qualidade. A educação privada ainda é a mais valorizada, por adestrar crianças e jovens para o mercado de trabalho – não existe a preocupação com formar cidadãos. No vácuo das deficiências da educação, cresceram as igrejas, o conservadorismo, o fundamentalismo, a violência, a ameaça ao Estado laico e à democracia.

 

No período anterior ao golpe militar de 1964, o Brasil vivia um momento de florescimento da cultura, da escola pública, da produção acadêmica, da política, com grandes manifestações, festivais universitários, a bossa nova, ouvia-se os primeiros acordes dissonantes do movimento tropicalista, da música de protesto, pulsava o teatro do absurdo, a invasão das telas pelo cinema novo, ou seja, o País vivia um momento extraordinário de liberdade, de criatividade, com a arte pulsando em toda parte, no qual a escola pública teve função determinante.

 

A escola pública era a melhor, era cidadã.   Quem fez os movimentos dos anos 1950 e 1960 foi à escola pública.

 

A reação dos conservadores veio como uma onda medieval, formada nas igrejas, tomou as ruas da capital paulista na “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, se espraiou por todo país levando violência, censura, prisões, torturas e mortes aos quatro cantos do país.

 

A presidenta Dilma foi vítima dessa onda de violência, que tenta se formar novamente. Mas o Brasil não vai permitir que prevaleça o retrocesso.

 

A vida não é filme, você não entendeu

(Paralamas do Sucesso)

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