JOÃO DO VALE: o Poeta do Sertão

   

                                                                                                    (*)  Por luiz clementino

 

João do Vale

 

Ôxente!!! Cunversa!!! Já viu “pau de arara” num passá fome no caminho?

 

 

 

Nas injustiças sociais do semiárido nordestino, a arte florou de um artista esplêndido, falecido há dezenove anos, que cantou as dificuldades e desigualdades conhecidas e vivenciadas por ele como sertanejo pobre e maltratado: JOÃO DO VALE, nascido em Pedreiras, em 1934, no interior do Maranhão. Um verdadeiro “Rebelde com causa”.

Vejam bem, para início de conversa, João não sabia escrever, tinha as músicas e as letras de suas composições (mais de 600), na cabeça. Com todas as dificuldades, com talento e sensibilidade extraordinárias, chegou ao topo, admirado e cantado pela alta roda da música popular brasileira. Foi grande em meio aos grandes. Entre muitas atividades, participou do show OPINIÃO, com Nara Leão, Zé Keti e muitos outros famosos, assistido por mais de 25 mil, pessoas somente no Rio de Janeiro. Nesse espetáculo Maria Bethânia iniciou sua carreira como cantora com a música Carcará, composta por ele.

Chico Buarque produziu e participou de dois discos maravilhosos em sua homenagem com as participações de Alcione, Alceu Valença, Chico Buarque, Ednardo, Edu Lobo, Fagner, Geraldo Azevedo, Ivon Cury, João Bosco, Luiz Vieira, Maria Bethania, Marinês, Miucha, Paulinho da Viola, Quinteto Violado, Sivuca e Ze Ramalho. É mole? Poucos têm tanto prestígio. Intelectuais, poetas, cineastas de todo o país o veneravam. O maestro Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Morais tinham grande admiração por João do Vale. As versões de “Minha História”, cantada por Chico e com arranjos das flautas e banda de pífanos, é bacana pra caramba. Os violinos e toda orquestração em “Carcará”, com introdução da toada “Os Olhos da Cobra Preta”, arranjado por Edu Lobo, é um belo tributo. Geraldinho Azevedo cantando “Coronel Antônio Bento”, com sanfona, e um solo de guitarra, fazem um belo “xote-rock”. Posteriormente o saudoso e estupendo, Tim Maia, o senhor “Me dê Motivo”, responsável pelo “soul brasileiro”, com seus 120 quilos de sensibilidade, regravaria, com sucesso nacional.

 

 

João do Vale e Chico Buarque

 

 

Homenagens e resgate de sua história seguiram-se após sua morte, como o livro Pisa na fulô, mas não maltrata o carcará, de Marcio Paschoal (Editora Lumiar); o CD Carcarás da Cidade – Um tributo a João do Vale, lançado pelo selo da Prefeitura de Nova Iguaçu, onde João do Vale morou por cerca de 20 anos; João do Vale mais coragem do que homem, de Andréa Oliveira (Edufitia) e o documentário João – muita gente desconhece, de Werinton Kermes, maravilhoso!

Suas composições são de um realismo impressionante, expressado pela vida difícil do sertão em poemas biográficos. A canção CARCARÁ, que projetou Maria Bethania nacionalmente, é de uma realidade chocante. O carcará é uma ave de rapina agressiva, um predador voraz, considerado o pássaro malvado do sertão. Nos versos de João ele diz que no flagelo da seca, onde há fome e morte, esse pássaro cruel come até cobra queimada e os bezerrinhos recém-nascidos. O bicho ataca no umbigo até matar.  No refrão, constata que o homem morre de fome no sertão, porém, o “carcará não vai morrer de fome”:

Carcará

Lá no Sertão

Carcará

Pega, mata e come
Carcará
Num vai morrer de fome
Carcará
Mais coragem do que home

Pega mata e come

 

https://www.youtube.com/watch?v=qA353PWwqd8 – carcará Maria Bethania

 

Opinião

 

 

Em  SINA DO CABLOCO, ele não aceita ser “meeiro” e vai embora para o Sul:

Mas plantar prá dividir
Não faço mais isso, não.
Eu sou um pobre caboclo,
Ganho a vida na enxada.
O que eu colho é dividido
Com quem não planta nada.
Se assim continuar
vou deixar o meu sertão,
mesmos os olhos cheios d’água
e com dor no coração.

 

 

É interessante registrar, que nessa época de moleque, João do Vale vendia pirulito e outras guloseimas, era chamado de “menino do pirulito”. Criou, então, um refrão para aumentar a venda, assim:

 

Pirulito

Enrolado no papel

Enfiado no palito

Papai eu choro

Mamãe eu grito

Me dê um tostão

Pra comprar um pirulito

Quando João e seu irmão Guariba, que tinha pouca grana, saiam para paquerar as mulheres, João compôs uma toada fazendo brincadeira com o irmão, que posteriormente seria sucesso com sanfoneiros do nordeste, que cantavam:

 

Mané macaco

Mané Guariba

Dinheiro pouco

Não sustenta rapariga

 

O talento de João do Vale era nato, estava no sangue, nada poderia deter seu processo criativo.
Meu samba é a voz do povo

Se alguém gostou
Eu posso cantar de novo

 

show-opiniao

 

 

Há alguns anos, eu fotografava com um equipe de trabalho no interior do Maranhão, quando constatamos que estávamos a 50 km de Pedreiras. Resolvemos conhecer a cidade natal de João do Vale. Nos dirigimos até a casa onde ele viveu. Hoje funciona um restaurante administrado pela viúva. Conversei com pessoas da cidade e muitas histórias desse admirável artista foram narradas. Fomos à famosa “Rua da Golada”, onde se passa o forró descrito no xote “PISA NA FULÔ”. É na verdade a zona da cidade, a casa das primas. Lembrei de uma entrevista onde ele afirmou com orgulho, que o puteiro passou a chamar-se, oficialmente, RUA  COMPOSITOR JOÃO DO VALE.

 

Existem fatos obscuros em sua vida, que João não gostava de comentar. Parece que fugiu de casa por alguma razão, e isso o emociova e o levava às lágrimas, principalmente quando se referia a sua mãe. Saiu muito cedo de Pedreiras, foi pra S. Luis, andou pela Bahia, Ceará, Piauí, Pernanbuco, Minas e Nova Iguaçu, trabalhou em garimpo, e chegou ao Rio de Janeiro como ajudante de pedreiro. À noite tentava contato com cantores famosos, que interpretavam, no rádio, canções do seu feitio.

João relata, em entrevista, como largou tudo para se dedicar somente à música. Nessa ocasião, trabalhando em obra, numa casa ao lado, a vitrola da vizinha não parava de tocar a belíssima toada ESTRELA MIÚDA, na voz de Marlene. O radialista dizia “Escutem por favor essa maravilha na versão de Maria Bethania, com Jaime Alem no violão”. João virou para o mestre de obras e perguntou:

– O senhor gosta dessa música?

– Gosto, respondeu o patrão.

– O senhor sabe de quem é?

– Não. De quem é?

– É minha, disse João.

-Então, o patrão bronqueou:

– Nego tá delirando, bota a massa e vai trabalhar.

 

João disse que ficou tão puto da vida que largou o balde no chão, e a partir daí, deixou aquela vida e dedicou-se de vez à carreira artística.

 

Seus xotes e baiões são bem estruturados, com letras de interpretações ambíguas, cômicas e maliciosas como NA ASA DO VENTO, PIPIRA e muitas outras. No baião PEBA NA PIMENTA, a história se passa em uma festa, onde no almoço o cardápio é tatu peba na pimenta. Dona Benta fica receiosa em comer, porém seu Malaquias afirma categoricamente que “pimentão não arde não”. E o refrão envolvente, com interpretação dupla no ritmo e na rima diz:

 

 

Benta começou a comê
A pimenta era da braba
Danou-se a ardê
Ela chorava, se maldizia
Se eu soubesse, desse peba não comia
Ai, ai, ai seu Malaquia
Ai, ai, você disse que não ardia
Ai, ai, tá ardendo pra daná
Ai, ai, tá me dando uma agonia
Ai, ai, que tá bom eu sei que tá
Ai, ai, mas tá fazendo uma arrelia

 

https://www.youtube.com/watch?v=WZo1LVTQOmo peba na pimenta – marinês

 

 

 

Como grande parte do meu trabalho fotográfico, é junto às comunidades carentes do nosso extenso país, percebe-se essa desigualdade. Ou seja, somos maiores exportadores de alimento do mundo (carne, grãos e café), e milhões de cidadãos passam não só fome como outras necessidades básicas, “o carcará não, pega mata e come, num vai morrer de fome, mais coragem que homem”. O absurdo é de tal maneira, que quem explora os excluídos, acha perfeitamente normal, e quem é explorado também acha natural. Desprovido de qualquer ideologia religiosa ou partidária, sou testemunha ocular e tele-ocular, que os programas sociais, beneficiou e beneficia os que vivem nessas condições. Em qualquer país desenvolvido, a cidadania começa alimentando os carentes. Nos EUA, mesmo com toda política externa nociva, o governo forneceu alimento para os cidadãos durante anos na grande depressão de 1929. O Japão distribui dinheiro aos desempregados devido à grande crise financeira de 2008, e muitas outras nações fazem o mesmo. Aqui não, essa praga do discurso “politicamente correto desprovido de preocupação social”, dos bem vestidos, dos bem empregados e bem alimentados, de que não se deve alimentar os famintos, com argumento sofismático e intelectualizado, que qualquer ajuda sustenta a malandragem, é característica de povo atrasado, elitizado, não humanistas, e de donatários hereditários. Os excluídos ajudaram a construir nosso país, como nenhuma outra população, e nada foi-lhes dado em troca.

Nossa memória histórica registra, que essa mesma conversa também aconteceu com os mercadores de escravos, quando se sentiram prejudicados com a lei áurea, ficaram furiosos, queriam indenização, e, posteriormente, com as leis trabalhistas de Getulio Vargas , os patrões acharam absurdo, férias remuneradas, carteira de trabalho, pagar horas extras, etc. Outra coisa, claro que a educação é fundamental, MAS NINGUEM APRENDE A LER E A ESCREVER COM FOME. Quando deixamos nossos filhos e netos na escola, eles vão bem alimentados.

Esses moradores esquecidos desconhecem o direito ao alimento, ao ar puro, à moradia e ao trabalho digno. Não estão concientes que a má remuneração, o desrespeito, o preconceito, a discriminação, a ofença moral, e a dependência, são outras formas de escravidão. Outro fato impressionante, flagelo da fome é hereditário, vem de pai para filho a séculos.

JOÃO DO VALE é um exemplo de vida em nosso país, principalmente para nós que não conseguiríamos viver sem música. Peitou, com sua arte, todo esse insensato sistema, essa má distribuição de renda crôica e secular, sem ódio ou rancor, porem com tristeza, resignação e poesia.      Afirmava que sua música era mistura de sua região e do seu povo. Toda essa realidade cruel o marcou profundamente e mesmo tendo vencido “a parada”, seu humanismo é comovente, demonstrado na toada “MINHA HISTÓRIA”, gravada também por Chico Buarque.

Como o “menino do pirulito” aos 11 anos não podia frequentar a escola, pois trabalhava na rua pra ajudar em casa, mais tarde escreveu e musicou “MINHA HISTÓRIA”, onde é relatado esse fato, como também a preocupação com os amigos de infância que moram no sertão. Vejam que maravilha:

Seu moço, quer saber, eu vou cantar num baião
Minha história pra o senhor, seu moço, preste atenção

Eu vendia pirulito, arroz doce, mungunzá
Enquanto eu ia vender doce, meus colegas iam estudar
A minha mãe, tão pobrezinha, não podia me educar
E quando era de noitinha, a meninada ia brincar
Vixe, como eu tinha inveja, de ver o Zezinho contar:
– O professor raiou comigo, porque eu não quis estudar

 

Hoje todo são “doutô”, eu continuo joão ninguém
Mas quem nasce pra pataca, nunca pode ser vintém
Ver meus amigos “doutô”, basta pra me sentir bem
Mas todos eles quando ouvem, um baiãozinho que eu fiz,
Ficam tudo satisfeito, batem palmas e pedem bis
E dizem: João foi meu colega, como eu me sinto feliz
Mas o negócio não é bem eu, é Mané, Pedro e Romão,
Que também foram meus colegas , e continuam no sertão
Não puderam estudar, e nem sabem fazer baião!

 

https://www.youtube.com/watch?v=fOF-KoPiHzw – minha história

https://www.youtube.com/watch?v=FXHTksch4Hg    estrêla miuda-maria betania

https://www.youtube.com/watch?v=Pq0MhIZIwqg   pisa na fulô

https://www.youtube.com/watch?v=Vjm1M5UA7yg coronel antônio bento – tim maia

https://www.youtube.com/watch?v=4poHPINYuFQ carcará – nara leão

https://www.youtube.com/watch?v=yHpIMb1JrRs peba na pimenta – joão do vale

https://www.youtube.com/watch?v=y3T2Pk0E4rs muita gente desconhece – documentário

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