Assédio moral: uma peste social
Quem não conhece a exploração, o tratamento degradante e desumano de patrões e chefes nas relações de trabalho? Nas relações entre marido e mulher, entre pais e filhos?
Quem não sabe de pessoas destruídas psicologicamente pela violência no trabalho? Muitas vezes se deprimem, chegam ao suicídio.
Pessoas que no dia a dia, no vai e vem da casa para o trabalho, do trabalho para casa, vivem tomadas por sofrimento pesaroso, provocado por açoites verbais, humilhações e desqualificações de “feitores” travestidos de coordenadores.
Quem ainda não viu aquela secretária, aquela assessora, aos prantos nos banheiros dos lugares onde trabalham por terem sido ofendidas, agredidas verbalmente, zombadas, por “seu superior”.
Ninguém tem o direito de faltar com o respeito, humilhar, gritar com quem quer que seja no ambiente de trabalho, usando a posição de chefe ou patrão.
A violência nas relações de trabalho não é algo novo, é latente, faz parte da formação cultural da sociedade brasileira.
A violência do colonizador branco deixou marcas na pele e na alma de negros, indígenas e de seus descendentes. Os campos conhecem o sangue o suor e as lágrimas deles em razão dos maus tratos dos feitores e patrões.
Na história recente, as relações de trabalho no Brasil ganharam novos ares com a industrialização e as técnicas gerenciais.
A ideologia fordista do trabalho e a administração científica do taylorismo e outras, nos tempos modernos, vestiram como uma luva a herança da escravidão brasileira.
Não se açoita mais escravos nos pelourinhos, açoita-se a alma de trabalhadores, com requinte de crueldade, atitudes manipuladoras, nova gramática, palavras cortantes, destruidoras da psique, para mais submissão, mais domínio, mais servidão, mais exploração.
No Brasil, é possível que a violência no trabalho seja mais cruel devido a fatores culturais, e ao mesmo tempo aceita, sem os devidos questionamentos, como algo inerente à ordem.
Nem os sindicatos falam mais na violência patronal, parece coisa do passado remoto. Parece que está tudo bem.
De certa forma tornou-se um tabu. Fala-se na violência policial, na violência contra a mulher, contra os homoafetivos, contra os afrodescendentes, contra jovens e adolescentes, contra os indígenas, mas não se fala na violência de patrões e chefes com a mesma consideração.
Essa cultura está viva. As vítimas da violência de patrões e chefes estão em situação igual à das vítimas da violência sexual, racial, de gênero, e homofóbica.
Vivem imersas na bruma do “pacto de silêncio”, oprimidas, fragilizadas pela condição de necessidade, de dependência do trabalho como fonte de subsistência própria ou da família.
Curiosamente, a violência nas relações de trabalho não é algo apenas do mundo patronal ou gerencial, avançou por outros setores da sociedade.
Contraditoriamente, dirigentes de instituições populares que trabalham com afirmação da cidadania, da democracia no país, pessoas responsáveis pela pedagogia libertária, por incrível que pareça, também reproduzem violência hierárquica, patronal.
São cada vez mais frequentes relatos de casos graves no ambiente de trabalho de organizações partidárias, sindicais, de movimentos populares.
Muitos dirigentes, de microfones em punho, nos ambientes públicos, fazem discursos inflamados na defesa dos direitos humanos, contra o autoritarismo, a opressão e a exploração dos trabalhadores, pela igualdade e fraternidade. No entanto, nos ambientes privados, muitos são algozes, verdadeiros tiranos com assessores, auxiliares, e com a própria família. E isso se transformou também em tabu. Como se fosse proibido falar que nesses setores se reproduz os mesmos mecanismos opressores em estruturas orgânicas.
Dirigentes referem-se ao educador Paulo Freire, em discursos, como o mais importante educador da pedagogia libertária, mas muitos deles são contraditórios nas relações de trabalho e familiar.
Quando isso ocorre, podem reproduzir com mais crueldade ainda a opressão sofrida na sociedade. O mestre Paulo Freire chamava isso de “opressão do oprimido”.
Ou seja, o sujeito vive um estado de esquizofrenia. Aprendeu uma gramática política, ostenta publicamente falsa generosidade, alimenta com discurso seu delírio narcísico, seu próprio orgulho, sua vaidade, sem se dar conta da contradição. Porém, se o sujeito tem consciência disso e mantém a perversidade, não passa de um manipulador barato.
Um falso humanista que inventou um personagem para viver, com discurso e performances prontas, completamente descoladas da própria personalidade, um lobo em pele de cordeiro.
O compositor Cazuza mandou um recado a esses autoritários contraditórios em uma de suas músicas: “Sua piscina está cheia de ratos, suas ideias não correspondem aos fatos”.
O crescimento da violência nas relações de trabalho atinge os próprios setores responsáveis por combatê-la. Instituições educacionais convencionais e entidades populares como sindicatos, partidos políticos e outras organizações do movimento social que promovem, de forma alternativa, a cidadania e a democracia, e lutam por direitos, com pedagogia libertária, precisam olhar para si mesmos, observar a coerência e a conduta ética na construção da sociedade de direitos humanos.
Isso demonstra que o Brasil está longe de superar a cultura monárquica e escravocrata. Na vida pública, salvo raras exceções, parlamentares, juízes, governantes, e outras autoridades, desprovidas de sentimento de igualdade, ostentam ares monárquicos, se comportam como semideuses, membros da corte. No setor empresarial, o patronato, da mesma forma, ainda age como colonizador, que veio para explorar, no país, recursos naturais e pessoas.
O sistema hierárquico costuma seguir a ordem monárquica, aristocrática, não a republicana e democrática.
A psiquiatra francesa Marie-France Hirigoyen (2000), criou o conceito “assédio moral” para definir a violência nas relações de trabalho, caracterizada como sendo qualquer conduta abusiva, configurada por gestos, palavras, comportamentos e atitudes que fogem do que é comumente aceito pela sociedade.
Segundo a autora, essa conduta abusiva, atenta contra a personalidade, a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa e não ocorrem apenas na relação vertical patrão e empregado, mas entre os próprios trabalhadores.
Os exemplos da violência no trabalho são muitos:
“Eu levo esse pessoal no chicote!” Ouvi isso de uma coordenadora de assessoria de imprensa de importante órgão estatal, referindo-se ao modo como ela coordenava a equipe de jornalistas sob sua responsabilidade.
Vi, na Câmara dos Deputados, um ex-deputado federal humilhar publicamente um assessor que queria falar-lhe algo urgente, simplesmente porque não admitiu ser interrompido na roda de conversas sobre amenidades, com seus iguais.
O deputado enxotou o rapaz de forma tão violenta que nem a um cachorro, nos dias de hoje, se admite tal tratamento. Constrangido, o assessor, ao sair, relatou a pessoas que assistiram a cena, outros casos absurdos de violência verbal e tratamento degradante que a equipe vinha sofrendo no gabinete do parlamentar. Nenhuma das vítimas denunciou a violência sofrida, por medo de perseguição.
Os autoritários, que costumeiramente mantém conduta abusiva contra pessoas, inventaram uma caixinha chamada “isso é do humano” onde depositam suas agressões. Uma forma, talvez, de justificar para si próprio e para o outro seu autoritarismo. E onde são depositadas as atitudes “desumanas”?
Quem trata o outro de forma degradante não respeita diferenças, características pessoais, danos psíquicos ocorridos por toda a vida, que fizeram as pessoas como elas são.
Aproveita-se, de forma perversa, das fraquezas, das vulnerabilidades das pessoas, para manipular, subjugar, submeter a seus desígnios, à alimentação de suas misérias pessoais, pusilanimidades, obsessões, carreirismos, por que não dizer, para submeter a seus “feitores interiores”, tão perversos e presente na cultura brasileira.
O trabalho, numa sociedade capitalista colonial como a brasileira, não costuma ser o resultado da convergência de talentos, habilidades e prazer de realização, mas uma necessidade de sobrevivência, que mais parece, de certo modo, uma representação do calvário de Cristo: uma cruz, o trabalhador como mártir a carregá-la, sob açoites verbais e atitudes opressoras, a crucificação, coroação, para no final ganhar o reino dos céus, no final de cada mês. Com direito a Madalenas (para enxugar o suor e as lágrimas no caminho), e torrões de açúcar (elogios manipuladores e prêmios).
O sistema atinge níveis inimagináveis de aceleração, imposta por novas máquinas e maquinetas (computadores, celulares e afins), que transformam os usuários em verdadeiras peças complementares, processadores de conteúdos, provocando mais alienação, hiperatividade, síndromes de baixa autoestima por não conseguirem manter-se no ritmo das maquinetas, e, consequentemente, sofrimento, depressão, como atesta estudos acadêmicos sobre a cultura urbana.
Quem não corresponde a esse estado de aceleração e alienação são estigmatizados, segregados, colocados à margem da produção e consumo, como se fossem seres exóticos.
Para amenizar o sofrimento, igrejas e farmácias crescem de forma assustadora com a oferta de seus sedativos.
Como se esse sofrimento social não bastasse, as forças empresariais, aristocráticas, investem contra direitos sociais dos trabalhadores já consolidados, como, por exemplo, entre outros, a terceirização do trabalho, a fim de obter mais lucros, mais acumulação de capital. Com isso, mais opressão, mais exploração e violência no trabalho.
Um dos maiores problemas para conter a escalada da violência no trabalho é a falta de legislação específica, que possa tipificar o crime. Existem vários projetos de lei no Congresso Nacional nesse sentido, mas são barrados pelos lobbies empresariais, que impedem a aprovação.
A Convenção nº 155/1981, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil, prevê, no âmbito da saúde, o bem estar físico e mental, como direito, no ambiente do trabalho, mas não se consegue avançar na aprovação de leis no Congresso.
Enquanto a legislação não vem, o governo devia promover campanhas nos meios de comunicação focando a violência no trabalho, pelo menos como problema de saúde pública e afirmação da cidadania, para amenizar o sofrimento de imensa parcela da população trabalhadora.
A Secretaria de Direitos Humanos, da Presidência da República, em parceria com o Ministério do Trabalho e Emprego, editou uma cartilha voltada para a contenção da violência gerencial no serviço público, mas ainda é muito pouco.
No mesmo sentido, poderiam ser criadas delegacias especializadas para acolher vítimas da violência patronal e gerencial, que vivem a situação de “pacto de silêncio”, assim como as delegacias de proteção à mulher, de proteção à criança e ao adolescente, contra a discriminação racial e a homoafetiva, enfim, esse problema ganha proporções inimagináveis como uma das raízes da violência social generalizada e precisa ser enfrentado.
A pressão e a violência no trabalho, evidentemente, estouram nos lares. As crianças são as vítimas mais atingidas. E assim se prolifera a peste moral na sociedade.